quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A ida numa sala vazia




Bato na porta. Escuto vozes no outro lado, mas quem me recebe é o silêncio. Descalço e de cabelos desarrumados, ele pede para que eu aguarde. Não há sofá e nem cadeiras para sentar. Sento então no conformismo nada confortável que só a falta de esperança proporciona. Sentada no nada espero. Durante a espera observo o excesso de vazio causado pela escassez de móveis. Brinco com a minha imaginação de decorar essa abundância de espaço. A brincadeira cansa. Chego a conclusão de que às vezes é inútil ser criança. Tédio por me sentir adulta. Levanto, do nada. Vou embora sem me despedir. Não há sentimento de culpa. Ele não responderia. Eu mesmo abro a porta. Não pretendo voltar. Sou mais feliz sendo despretensiosa.

Foto: WEB.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Segunda-feira




Ônibus e carros passam rápido
em relação às pessoas ainda lentas e desatentas
responsáveis apenas por bocejos cheios
de desejo de dispensa e cama
nas faces ainda gastas do fim
neste começo
de semana.


Foto: WEB

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Idéias incolores




Desvio desse espaço vazio
Fujo como se houvesse perigo
no branco que me chama aos gritos.
Ouço. A princípio ignoro.
De novo, então eu olho.
As idéias estão tão incolores
Roubo então das flores?
Não consigo. Não posso.
O máximo, e com sacrifício,
é o tom de quando estão podres.
Justamente quando já perderam todo o sentido
de serem o que são.
Já não há odores e beleza para admiração.


Ilustração: Adelaide Teles

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Percurso do rio para praia




Deságuo em um rio...
Nado em risos
Engulo água. Cuspo o nada
Julgo-me ser peixe
Mas não sou escamada
Insisto como sereia
Mas meu cabelo empalha
Já descascada sinto sede
Mas H2O só em versão salgada
E com saudades das minhas paredes
Pergunto-me: Será que sou dessa praia?
Então avisto na areia uma afogada.


Foto: WEB

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ímpares que formam pares




Somos inteiros,
em sonhos partes.

Estreito é o fio
entre o romance
e a realidade.

Conceitos fixos
em seres subjetivos
são inaplicáveis.

Há um convívio
diário e bonito
entre ambigüidades.

Embora plurais,
sempre singulares.
Embora ímpares,
sempre pares.


Foto: Honey

domingo, 19 de outubro de 2008

Tudo por inteiro




Ando e corro pelos meios
e não pelas beiradas.
Ignoro os escanteios
gosto mesmo é das jogadas.

Me esparramo quando sento
no centro do chão da sala.
Estranho estar nos cantos
onde nada, nem eu, se encaixa.

Atrás da porta não espreito,
sem receio olho o que me aguarda.
Comporto-me como leigo
saber demais as vezes estraga.


Foto: Pedro Pinto

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Entre tosses e reflexos




Essa tosse me corrói. E ela nem é minha. Apenas fui colocado para fora a partir dela. Na verdade ela é o descontrole de quem engole sem mastigar. E os pedaços mal mastigados não são nada além do que as poses daquele que sempre possui um espelho por perto, claro que carregado por alguém. Assim é fácil achar uma posição em que a feiúra não se torne evidente. O peso, a princípio, é para quem carrega o espelho, mas como bem disse, a princípio. Já que do meio pro final, aquele que dá origem ao reflexo é que sente o peso de ser refém da imagem obtida apenas em alguns poucos minutos, e que nada são quando mergulhados em muitas e longas horas.

Ilustração: “Casal” (1919) - Guache sobre cartão do pintor naturalizado brasileiro Lasar Segall.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Pés alagados




Sei que chove
e que agora a água
cobre teus pés.

Mas não se afobe
nade no nada
caso alague tudo. Fé.

Sentido-se alagada
sinta-se numa lagoa
finja como der.

Quando molhar-se
se torna uma escolha
secar-se também é.


Foto: Robvini

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Nova infância




Somos crianças grandes
ofegantes com as (an)danças
em uma cidade aspirante
em ser nossa melhor lembrança.

Grande perda de tempo!
Nós dois e o etéreo que carregamos dentro
é que faz dessa nossa nova infância
inesquecível, instigante e com aroma de incenso...


Foto: Praça XV / Fevereiro de 2008.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Aquela carta




Gostaria de resgatar aquela carta. Aquela, onde molhei as letras em tinta (não me recordo a cor) com as minhas piores lágrimas. Gostaria de analisar a grafia e ter certeza de todos os meus erros de português, principalmente os de pontuação. Era terrível a minha relação com as vírgulas e os pontos finais. Também gostaria de ter certeza de uma suposição adquirida com as vagas lembranças do que escrevi, a de que mesmo sendo transparentes, as lágrimas cegam, ou no mínimo embaçam qualquer boa visão de perto. Mas ao reler o que acabo de escrever, surpreendo-me com essa enorme necessidade de certezas, já que hoje possuo a maior delas, a de que todos os motivos que me levaram a escrever a tal carta e até a própria, foi o maior e mais necessário mal. Tanto para o destinatário, quanto para o remetente. A maneira como o mal foi entregue é que foi desnecessária. Talvez more neste ponto a necessidade das tais certezas, talvez as enxergando de forma nítida, não como uma mera lembrança embaçada por úmidas tristezas, a probabilidade de acertos e menos erros seja maior numa próxima carta. Talvez esta não seja nem necessária. Tomara.

Obra: "A carta" de Pierre Bonnard.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Sobre o verbo poetizar




Poetizar é ser criança!
Brincar de pique com as palavras,
e com as rimas de ciranda.


Ilustração: WEB.

Poça de gratidão




A gratidão escorre pelos dedos. Uma poça é formada. Observo e constato que aqueles que uma dia denominei como inimigos, na verdade foram os que por mim fizeram os maiores e melhores favores. Fui obrigada a supera-los. Cresci. Os denominados amigos não foram capazes de tanto.

Obra: A Lua - Tarsila do Amaral.

sábado, 4 de outubro de 2008

Medo da pia e do espelho




Faltam palavras...
Faltam copos d´água
em cima da mesa
para afastar a secura
da minha boca.
Tento engolir saliva...
Engulo apenas minha falta de vida.
Descubro a causa, mas não a cuspo.
Apenas fujo do encontro com a pia do banheiro.
Espelhos vigiariam
o meu consumo de água não-potável?
Quem sabe eles contariam ao mundo
que não sou mais saudável?
Medo. Respeito pelos os que me refletem.
Afinal, eles me repetem.


Foto: Bar da cachaça, em Imperatriz do Maranhão por Diego Aragão

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Achados das últimas folhas do caderno preto




I
A fluidez das águas. Cabem nelas a possibilidade de serem calmas e revoltas. Na verdade elas nunca são, e continuam sendo. Esse caráter existencial é de uma beleza que me comove, e que de certa forma me resolve, quando me deparo com a problemática de (ainda) não ser. E a contemplação continua. Da água e minha. Sempre Contínuas.

II
A idéia de plenitude ilude. É um chão que apenas piso, andar seria muito. E esses alguns segundos permitem que minha imaginação possua certeza da existência dos minutos e das horas. Cada vez mais me convenço que imaginar certezas é uma inação idiota.


Obra: "A Girl Writing" - Henriette Browne (1829-1901)